No ano em que ex-guerrilheiro comemoraria centenário, documentário   revela vida íntima do ícone da esquerda e traz rap inédito de Mano Brown
  Divulgação
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Marighella (à dir.) com a sobrinha Isa no ombro, ao lado da companheira Clara Charf e do resto da família Grinspum em 1962
 MORRIS KACHANI
 DE SÃO PAULO
"Um dia, faz 40 anos, eu estava indo com meu pai para a escola e ele   disse: 'Vou te contar um segredo: seu tio Carlos é o Carlos   Marighella'". Assim começa o documentário "Marighella", de Isa Grinspum   Ferraz, com estreia prevista para outubro. Em uma hora e 40 minutos,  "Marighella" desfia a trajetória do ícone da  esquerda brasileira que  acabou baleado e morto dentro de um Fusca em  1969, em São Paulo.
Meio século da história do país pode ser contado a partir dos   acontecimentos em sua vida: a gênese do comunismo baiano, mulato, do   qual Jorge Amado era partidário; o conflito entre integralistas e   comunistas; a legalização do Partidão; a clandestinidade; a frustração   com Stálin; o golpe militar e, por fim, a luta armada.
Mas o que torna "Marighella" único é o olhar íntimo que só quem era de   dentro da família seria capaz de documentar: "Tio Carlos era casado com   tia Clara. Eles estavam sempre aparecendo e desaparecendo de casa. Era   carinhoso, brincalhão, escrevia poemas pra gente. Nunca tinha associado  o  rosto dele aos cartazes de 'Procura-se' espalhados pela cidade",   continua a voz em off da própria Isa, que assina direção e roteiro do   filme.
"A ideia é desfazer o preconceito que até pouco tempo atrás havia contra   meu tio. Era um nome amaldiçoado, sinônimo de horror. Além da vida   clandestina e do ciclo de prisões e torturas, procuramos mostrar também o   poeta, estudioso, amante de samba, praia e futebol, e acima de tudo o   grande homem de ideias que ele foi", diz Isa, socióloga formada na USP.
Na esteira da pesquisa que foi feita, surgiram algumas revelações. Clara   Charf, companheira de Marighella de 1945 até sua morte, hoje aos 86,   desenterrou uma pasta que pertencia a ele, na qual aparecem   correspondências, mapas e esboços de ações guerrilheiras.  A produção  também descobriu uma gravação de Marighella para a rádio  Havana, de  Cuba. Em sua fala tipicamente cadenciada, ele anuncia o  rompimento com o  Partido Comunista e a adesão à luta armada. Mesma época  em que  intelectuais europeus como o cineasta francês Jean-Luc Godard  passam a  enviar remessas de dinheiro em apoio à sua causa.
O filme ainda traz trilha sonora de Marco Antônio Guimarães e Mano Brown   e depoimentos esclarecedores de militantes históricos, como o crítico   literário Antonio Candido: "Marighella encarnava moral e   psicologicamente o seu povo. Ele era pobre e não abandonou sua classe".
Já a judia Clara enfrentaria resistência do pai ao assumir o   relacionamento, no que acabou se transformando numa versão tropical de   "Romeu e Julieta". "Carlos era preto, comunista e gói (não judeu)",   lembra Clara, aos risos. "Mas era muito doce e, no fim, conquistou a   todos."